Entrevista a Josenildo Guerra

“A não existência de regulação dos média no Brasil constitui a grande diferença em relação à realidade portuguesa”

Josenildo Guerra é Professor Titular da Universidade Federal de Sergipe (Brasil). Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (1994), mestrado (1998) e doutoramento (2003) em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia. Encontra-se no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho para uma missão de investigação integrada no seu pós-doutoramento que desenvolve até ao fim de junho de 2018 sob o tema “Protocolo de avaliação de qualidade jornalística Brasil-Portugal com foco na gestão editorial: teste do instrumento e da base de dados Q-Avalia”, e que tem orientação do investigador Manuel Pinto. Pretende testar o software Q-Avalia, cuja metodologia e o software foram por si desenvolvidos. Por isso, afirma que a interlocução com os colegas do CECS oferecerá importantes contribuições para o seu aperfeiçoamento.

 

– “Protocolo de avaliação de qualidade jornalística Brasil-Portugal com foco na gestão editorial: teste do instrumento e da base de dados Q-Avalia” é o título da sua investigação de pós-doutoramento. O que pretende com este estudo? Pode resumir, de certa forma, o seu trabalho?
São basicamente três objetivos: a) realizar uma avaliação de qualidade experimental de organizações jornalísticas brasileiras e portuguesas, b) testar a metodologia de avaliação de qualidade editorial e c) testar o software Q-Avalia, ambos (a metodologia e o software) desenvolvidos por mim durante a pesquisa “Gestão da Qualidade em Organizações Jornalísticas: Um panorama inicial” (2013-2017), financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Tanto a metodologia quanto o software estão em sua primeira versão, por isso a interlocução com os colegas da UMinho, especialmente o prof. Manuel Pinto, que supervisiona a pesquisa aqui, oferecerá importantes contribuições para o seu aprimoramento. Essa pesquisa se insere no contexto do trabalho que tenho realizado há alguns anos no sentido de desenvolver ferramentas de avaliação de qualidade editorial que auxiliem a sociedade e os usuários dos serviços noticiosos assim como as organizações jornalísticas e os profissionais a reconhecer critérios e padrões de desempenho editorial, a fim de contribuir com a reflexão em busca de um jornalismo melhor.

– Na ação comparativa que desenvolveu, até agora, entre a qualidade jornalística de Portugal e do Brasil, qual é o seu comentário, ainda que, presumo, não disponha de todos os dados.
Sim, não disponho dos dados ainda, por isso não posso avaliar com segurança. Um aspecto seguramente distinto entre os dois países e que pode impactar na avaliação é o fato de Portugal ser um ambiente de mídia regulado, ao passo que o Brasil não. Por exemplo, um dos indicadores de avaliação que poderei utilizar é a existência de um Projeto Editorial. Em Portugal, é obrigatório que as produções jornalísticas tenham seu “estatuto editorial”. No Brasil, essa é uma decisão livre das empresas. E muitas não têm um documento como esse.

– A base de dados Q-Avalia em que consiste? Tem um recorte quantitativo/qualitativo? Que tipo de conclusões permite extrair dos dados da sua investigação?
A base de dados Q-Avalia é um sistema estruturado para realizar avaliações de desempenho. Ela permite a criação de formulários, a gestão dos dados da avaliação com a devida documentação, o processamento dos resultados e a sua publicação. Os dados são produzidos de forma quantiqualitativa, isto é, as categorias, requisitos, indicadores e subindicadores são definidos e analisados caso a caso em cada produção analisada; dessa análise resultará uma mensuração quantitativa, através da atribuição de pontos, referente ao grau de satisfação do item avaliado em relação ao parâmetro constante do indicador. Essa pontuação é gerada a partir de cada subindicador, e resultará na pontuação final da produção, que poderá ser comparada com a pontuação final de outras produções avaliadas. Qualquer grupo de pesquisa interessado pode criar seu formulário de avaliação e realizá-la, com apoio do sistema. Os formulários gerados para avaliação podem ser disponibilizados para outros dois segmentos: os usuários, que podem ser chamados a produzir sua avaliação; as organizações avaliadas, que podem ser chamadas a produzir sua própria autoavaliação. Em tese, portanto, o sistema permite comparar os resultados, em uma mesma pesquisa, dos três segmentos: os pesquisadores responsáveis pela pesquisa; os usuários e as organizações avaliadas. A intenção é que o sistema se converta numa base de dados pública, na qual os dados e resultados das pesquisas realizadas possam ficar disponíveis para consulta tanto da comunidade acadêmica quanto da sociedade e das próprias organizações. Isso permitiria a criação de um ambiente de discussão e reflexão sobre a qualidade jornalística, seus parâmetros e metodologias, por um lado, importante do ponto de vista acadêmico e profissional, e por outro poderia se converter numa importante ferramenta de literacia midiática, à medida que consiga envolver os usuários dos produtos jornalísticos nos processos de discussão. Esse é o conceito do sistema. Em alguns pontos, como o do apoio às avaliações por grupos de pesquisa, temos já feito avaliações e ele tem correspondido. Em outros pontos, como o envolvimento das organizações para se autoavaliar e a avaliação dos usuários, precisamos de testes. Mas, o sistema está na sua primeira versão, estamos ainda finalizando algumas funcionalidades, do que resulta que temos muito ainda por fazer. A expectativa é que neste período da UMinho tenhamos muitas contribuições a receber.

– Pode caracterizar, mesmo em termos genéricos, a qualidade do jornalismo praticado em Portugal e no Brasil?
Em termos bem genéricos, porque não tenho dados ainda que me permitam uma análise minimamente fundamenta. O que me chama atenção nesse momento são as diferenças decorrentes do ambiente de mídia regulado em Portugal. Os estudos da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), sobre o pluralismo político-partidário, por exemplo, oferecem uma referência para as organizações jornalísticas. No Brasil, praticamente não temos instrumentos que monitorem de forma regular e sistemática os veículos. Penso que isso impacte no comportamento das organizações jornalísticas, dos profissionais e também dos usuários de notícias, de modo a gerar expectativas de um jornalismo melhor. Portanto, a não existência de regulação dos média no Brasil constitui a grande diferença em relação à realidade portuguesa.

– Acha que a Internet veio alterar o ecossistema mediático, devido à sua instantaneidade, gratuitidade e fragmentação da informação? Que implicações é que tudo isso teve para a profissão de jornalista?
A questão é muito complexa. Vou tentar abordá-la sob o ângulo que me é mais familiar. Sem dúvida, a internet provocou transformações profundas no ecossistema midiático e na forma como as pessoas se relacionam com o jornalismo. Mas, penso que não alterou o núcleo duro dos contratos básicos que regem a atividade, como o compromisso com a veracidade das informações, com a pluralidade e com a relevância, produzidos por agentes profissionais que precisam cultivar métodos de trabalho e procedimentos éticos que inspirem confiança à sociedade e à sua audiência. A internet ampliou as possibilidades para o jornalismo, algumas delas bem aproveitadas, outras, infelizmente, ainda não. E trouxe dificuldades, como o problema do modelo de financiamento, que tem afetado o setor. Do ponto de vista da atividade, a percepção que tenho é que, até o momento, o jornalismo explorou demais as possibilidades da internet como ferramenta de comunicação, todos tem sites de internet, redes sociais, muitos já são multimídia, etc. Mas, as possibilidades da internet para a produção de uma informação mais qualificada ainda estão subutilizadas. Por exemplo, as possibilidades de pesquisa proporcionadas pela internet são muitas para superar a fragmentação da informação. Mas, não são exploradas. Aqui, acredito que ainda não tenha sido encontrada, pelo menos no caso da experiência brasileira, com a qual sou mais familiarizado, a melhor adequação entre novas rotinas organizacionais e as possibilidades da internet. Muito se utilizam as redes sociais, por exemplo, e pouco se utilizam as bases de dados públicas para levantar informação relevante e consistente, de modo regular. Trabalho com a hipótese de que a gestão do conhecimento das próprias organizações jornalísticas, internamente, sofre limitações, não explorando o volume de informações que elas mesmas têm ou poderiam ter se explorassem as possibilidades de sistemas de informação sofisticados para a sua gestão interna. Há mais ênfase nos processos de produção voltados para a distribuição de conteúdo multiplataforma do que ênfase no enriquecimento da informação jornalística. Avançar nessa área implica ter profissionais mais familiarizados com fundamentos da área de sistemas de informação e computação, aliados à gestão do conhecimento. Algo que tem sido buscado por aqueles que trabalham com o jornalismo de dados, avalio. Alguns desses fundamentos eu trabalhei em outra pesquisa, concluída em 2012, com financiamento do CNPq, que resultou no desenvolvimento de um software experimental, o Qualijor, voltado à gestão da produção jornalística de modo orientado para a qualidade. É um sistema que procurar organizar conteúdos e gerenciar informações internas de uma produção jornalística, gerenciar o fluxo de produção e associar, a conteúdos e a processos, parâmetros de qualidade editorial. Nele, estão relacionados recursos provenientes da internet, da qualidade e da gestão do conhecimento, associados a um saber jornalístico que é sua base. É nesse sentido que vejo os maiores desafios profissionais, neste momento.

– Como vê a qualidade do jornalismo no futuro?
Primeira coisa, é não aceitar qualquer reivindicação de qualidade dissociada de parâmetros e processos de avaliação. É comum haver referências, sobretudo das empresas, sobre a qualidade de seus produtos, uma qualidade autoatribuída sem uso de qualquer recurso consistente de avaliação. A chancela de qualidade deve ser consequência de processos de avaliação, com critérios e metodologia claros. Deve demonstrar, de modo transparente, quais são as diretrizes editoriais, os processos de produção e a efetividade com que uma produção jornalística atua. Deste modo, considero indispensável para distinguir organizações e profissionais comprometidos e efetivos em honrar as responsabilidades próprias dos contratos básicos que regem a a atividade. O tema da qualidade é desafiador para ser aplicado ao jornalismo, por tratar-se de uma área na qual existam muitas flutuações de entendimento acerca de suas responsabilidades e possibilidades, de seus contratos a que me referi no início. Até mesmo de seus contornos. Por isso, o tema nos desafia na identificação de parâmetros e de metodologias de avaliação. Tem uma dimensão política, no acordo sobre as responsabilidades e os critérios de avaliação daí decorrentes; tem uma dimensão técnica, a capacidade de elaborar metodologias de mensuração de desempenho com vistas a proceder a correta avaliação das práticas. Nenhuma delas é simples. Apesar disso, penso que as produções jornalísticas, sejam elas públicas ou privadas, de pequeno ou de grande porte, poderão ter nos processos de avaliação de qualidade uma importante chancela para respaldar sua credibilidade editorial junto à sua audiência e à sociedade.

Texto e fotos: Vítor de Sousa