P – O tema do pós-doc que pretende desenvolver no quadro do CECS intitula-se “Da tutela à disciplina, da proteção ao mundo do trabalho: história(s) da(s) infância(s) pobre(s) entre o Brasil e Portugal (1900-1940)”. Fale-nos um pouco da sua investigação? Em que é que consiste? Porquê a baliza temporal 1900-1940?
R – Neste novo projeto busco compreender como crianças e juvenis, dentre o expressivo segmento de trabalhadores pobres urbanos das cidades de Belém (Pará) e Braga (Portugal), entreteceram práticas de apropriação e de uso dos espaços citadinos, a partir das quais forjaram suas identidades sociais no contexto de cidades que atravessam expressivos processos de metropolização, ao mesmo tempo em que conviviam com fastígios de ciclos econômicos precedentes e crise em setores importantes das economias locais.
Com estribo na pesquisa de documentação judiciária e policial, em arquivos nos dois países, estudo as formas de inserção de crianças classificadas como ‘menores’ na esfera do trabalho formal/informal e paralelamente, as práticas de cuidado desenvolvidas pelos poderes públicos das localidades em relação a crianças e juvenis pobres, órfãos e/ou desvalidos.
Assim, parto do entendimento que na Amazônia (Belém) e em Portugal (Braga) se constituíram sociedades e espaços urbanos contraditórios em si mesmos, nos quais a utilização cotidiana de artefactos de modernidade nas cidades conviveu com a miséria, com o desemprego, com os efeitos jurídico-policiais da pobreza e com o alargamento dos limites territoriais urbanos que se pautou na disseminação da criminalidade e insalubridade, e nas mais diversas formas de violação da infância.
Tais condições históricas impactaram não apenas o ‘mundo dos adultos’, mas incidiram diretamente e sobremaneira nas condições de vida e nas formas de vivenciar a infância de crianças e juvenis oriundos das camadas empobrecidas.
A escolha por investigar a primeira metade do século XX se deu em razão das significativas transformações vivenciadas pelos dois países, citando-se com especial ênfase a derrocada dos regimes monárquicos e a instalação do sistema republicano em ambas nações, que ocasionou mudanças de âmbito jurídico legislativo nos modos de atenção a infância pobre e trabalhadora.
Acrescentemos a isso, a ocorrência das duas grandes guerras mundiais e as crises econômicas que se sucederam aos conflitos, as quais ampliaram as formas de inserção das crianças no universo do trabalho.
P – Do que já investigou, os resultados obtidos foram ao encontro das suas expectativas?
R – Sim, estou bastante animada e feliz com as iniciais. Estamos na primeira fase das investigações; porém, os resultados têm-se mostrado relevantes e promissores. Primeiramente, destaco a descoberta de novos fundos documentais tanto no Brasil quanto em Portugal, ainda não investigados, compostos por rica documentação judiciária relacionada aos Tribunais de menores no Distrito de Braga e ao Juízo de Menores no Pará, as quais sinalizam aspetos do mundo do trabalho infantil que ultrapassam fronteiras e aproximam essas sociedades.
Em paralelo, é possível vislumbrar aspetos do cotidiano de crianças brasileiras e portuguesas que indiciam estratégias de sobrevivência em face da fome, do abuso físico e da exploração do trabalho.
P – Porque é que decidiu desenvolver o seu trabalho no CECS, sob orientação da Professora Isabel dos Guimarães Sá?
R – O CECS oferece a estrutura acadêmica e institucional que estava procurando há algum tempo para desenvolver meus estudos de modo mais abrangente. O caráter interdisciplinar do Centro de Estudos, a qualidade do corpus de professores, o teor dos projetos atualmente desenvolvidos e a possibilidade de estabelecer o contato com pesquisadores de diferentes nacionalidades e trajetórias de investigação constituíram aspetos decisivos para minha escolha por desenvolver o pós-doc no CECS.
A Professora Isabel dos Guimarães e Sá é referência historiográfica reconhecida no Brasil e em outros países em relação aos estudos sobre a infância exposta e desvalida em Portugal. Suas pesquisas e textos produzidos demonstram profunda sensibilidade nas discussões sobre a infância, contextos de empobrecimento e seus desdobramentos. Acrescente-se a disponibilidade pessoal da Professora Isabel em envolver-se em projetos desafiadores que permitam abordagens inter e transdisciplinares, que neste caso, se referem ao diálogo entre a história social e o direito por meio da pesquisa em fontes judiciárias.
P – Que resultados espera obter no final do seu trabalho de pesquisa?
R – Há uma questão fundamental que circunscreve a escolha da temática de pesquisa e sobre a qual repousam minhas expectativas de investigação. A perceção dos abusos contra a infância pobre, ocorridos ao longo do século passado, me fazem almejar que ao final do projeto, consiga explicar por que certas práticas de maus tratos de crianças e juvenis (quer fosse por meio da exploração do trabalho ou por outras formas de abuso físico e/ou emocional) foram aceitas e reiteradamente praticadas por sociedades que no limiar do século XX, apresentavam um discurso voltado para a defesa do progresso, civilização e modernidade.
Nesse sentido, posso dizer que “ideologicamente” e contra qualquer mito de “neutralidade científica” dar voz e vez a sujeitos históricos que por décadas foram preteridos pela historiografia tradicional de ambos os países pesquisados.
Não obstante, espero estreitar os vínculos de cooperação para novos projetos que serão desenvolvidos entre a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e a Universidade do Minho-CECS, proporcionando o intercâmbio de outros pesquisadores, o fortalecimento de grupos de pesquisas e a construção de estudos inovadores nas áreas que tangenciamos no projeto de pós-doc.
Entrevista conduzida por Vítor de Sousa e concedida por escrito.