Luís Cunha é antropólogo, professor auxiliar na Universidade do Minho e investigador do CECS, onde integra o Grupo de Estudos Culturais. Tem realizado pesquisa sobre memória social, constituindo a “fronteira” um dos temas que tem abordado nesse âmbito. A outra área de investigação de que mais se tem ocupado é a das identidades nacionais, sobre as suas várias vertentes. Uma delas prende-se com as representações da lusofonia. Nesse quadro, publicou algumas obras, como “A nação nas malhas da sua identidade. O Estado Novo e a construção da identidade Nacional” (2001) e “Memória social em Campo Maior. Usos e percursos da fronteira” (2006). Para além disso, tem produção fora da sua área de investigação, tendo vencido recentemente a 11ª edição do Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca 2016, cujo livro que daí resultou, “Vinte Mil Léguas de Palavras”, foi lançado no dia 21 de outubro de 2017, em Santiago do Cacém. A obra, que foi distinguida por decisão unânime do júri, está fora do que Luís Cunha faz enquanto académico, sendo por isso um exercício que reputa de importante, já que, como refere nesta entrevista, que foi concedida por escrito, “a escrita académica é um verdadeiro espartilho”. Para já, não pensa publicar mais ficção, mesmo que defenda que “a escrita só ganha vida quando sai de nós e é apropriada, de várias formas, por quem lê”. Observa, no entanto, que existe em Portugal uma dificuldade grande em fazê-lo, nomeadamente por parte dos novos autores. Não rejeitando, liminarmente, vir a publicar mais ficção, para já não admite essa eventualidade, tanto mais que tem “a gaveta cheia e já não cabe lá mais papel impublicável”.
Pergunta (P) – Venceu, em 2016, a 11ª edição do Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém), com o livro “Vinte Mil Léguas de Palavras”, recentemente apresentado, na sequência dessa distinção. De que trata este livro que tem a particularidade de, cada um dos seus contos, ter mil palavras. E, já agora, porquê essa dimensão para cada conto?
Luís Cunha (LC) – Paradoxalmente, o rigor das mil palavras foi um pouco acidental, fruto do modo como foram escritos os textos que vieram a tornar-se em vinte contos. O desafio inicial, que fiz a mim mesmo, foi o de ocupar as manhãs entre Natal e passagem de ano, habitualmente preguiçosas, com a escrita diária de uma pequena narrativa. Uma boa parte destes contos nasceram assim, e como foram escritos num período muito curto e definido acabaram por ficar, todos eles, com uma dimensão muito parecida. Calhou um deles ficar com exatamente mil palavras e desse acaso surgiu a ideia de recompor os outros de forma a ficarem, também eles, com a mesma dimensão. A intenção inicial era de associar uma ilustração a cada conto, jogando, assim, com a sentença, atribuída a Confúcio, de que uma imagem vale mais que mil palavras. O livro acabou por sair sem gravuras mas fica a intenção.
É ainda o facto de os contos reunidos neste livro, pelo menos uma boa parte deles, terem sido escritos num período de tempo relativamente curto que explica, acho eu, a significativa consistência temática que possuem. Não diria que há um tema, mas há, seguramente, um feixe de motivos mais ou menos convergente. A loucura e a morte, desde logo, assombram vários destes contos, temas tratados com algum humor negro, às vezes, ou com um nadinha de crueldade, noutras ocasiões. Convergentes também, entendo eu, no modo como se usa a escrita enquanto exercício de ilusão, por exemplo recorrendo a desenlaces inesperados ou a situações algo absurdas, procurando (quase) sempre surpreender o leitor.
P – O que significou para si este prémio?
LC – Significou, sobretudo, a possibilidade de publicar este livro. Parece pouca coisa, mas a verdade é que hoje, em Portugal, dificilmente se encontra uma editora disposta a arriscar em autores que não são conhecidos, mais ainda quando se está longe de Lisboa e não se frequentam os circuitos adequados. É fácil editar se o autor se chegar à frente pagando a edição ou se arranjar um patrocinador que o faça. Algo que existe também, todos o sabemos, na edição de textos académicos, mas que está a fazer das editoras meras “publicadoras”, isto é, empresas dispostas a publicar o que quer que seja desde que haja dinheiro à cabeça. Isto descredibiliza as editoras e penaliza alguns bons autores, que publicando nestas editoras acabam por pagar o ónus dessa descredibilização. Os prémios literários atribuídos a obras inéditas permitem romper um pouco este cerco e fechamento, muito embora não signifiquem, propriamente, uma aposta num autor – as edições são muito pequenas, não chegando a haver uma distribuição efetiva dos livros pelas livrarias do país.
O Prémio Nacional do Conto Manuel da Fonseca vai já na 11ª edição, existe há já muitos anos, está associado a um dos grandes nomes da corrente neorrealista (creio que hoje imerecidamente desvalorizada) e apresenta-se como «Nacional», o que o afasta da mania paroquialista de alguns prémios deste género, que apelam a temáticas ou autores locais. Por estas razões este prémio agradou-me bastante.
P – Sendo antropólogo, docente e investigador, com obra feita na área, o que o leva a escrever fora das ‘suas’ temáticas de investigação e dar um salto até à ficção, o que já não acontece pela primeira vez? Ou será que não é assim tão fora das suas temáticas de investigação quanto isso?
LC – Sim, é fora daquilo que faça enquanto académico, e é justamente por estar fora que é importante para mim. Comecei a escrever ficção mais a sério, quer dizer, procurando fazer algo com princípio, meio e fim, algo que pudesse ser mostrado e publicado, na «ressaca» da escrita da tese de doutoramento. A escrita académica é um verdadeiro espartilho. O esforço de justificar tudo o que dizemos, a procura de todos os autores que, antes de nós, escreveram algo parecido com o que nós dizemos, impõe-nos um peso permanente e sufocante. Sente-se isso em qualquer artigo académico, claro, mas a escrita de uma tese é algo de outra natureza, até pelo tempo que leva a concluir. Pela minha parte saí dela cansado e com vontade de escrever de outro jeito. Escrevi um romance, que tentei editar sem sucesso e que aguarda na gaveta por melhores dias, e escrevi também outras coisas, ainda movido por esse desejo de uma escrita onde a imaginação se impusesse à escrita vigiada, supostamente rigorosa e até um pouco sufocante que a academia nos exige. Neste sentido, este livro não é a primeira incursão no campo da literatura mas é a única que pode ser lida por interessados ou curiosos.
P – Escreve ficção complementa-o enquanto cientista social?
LC – Pode dizer-se isso, sim. Sinto que visto muito mais a pele de leitor que a de escritor, pelo menos no sentido em que poderia abdicar de escrever mas não de ler. Enquanto «escrevedor», uso diferentes registos. A escrita académica, rigorosa, cumpridora de todas as regras do ofício; a escrita de que me sirvo para participar, enquanto cidadão, no debate público, o que faço, sobretudo através do que publico no Facebook, único fórum a que tenho acesso corrente; finalmente o que escrevo no campo da ficção, e aqui não há nem a vigilância do rigor académico nem a implicação política da cidadania, sendo antes um território livre e disponível para a imaginação. Se o meu lado de académico interpreta o mundo e se o meu lado de cidadão implicado critica e promove visões do mundo, o meu lado de ficcionista inventa mundos. Nesse sentido, sim, estas três dimensões de escrita complementam-me.
P – Tem previsto escrever mais livros de ficção? Em caso afirmativo, já há projetos em carteira?
LC – Escrever para mim próprio não me interessa nada. A escrita só ganha vida quando sai de nós e é apropriada, de várias formas, por quem lê. Tendo este entendimento, e tendo em conta a dificuldade de publicar que existe neste país, há já alguns anos que deixei de escrever ficção. Não digo que não o volte a fazer, mas a verdade é que tenho a gaveta cheia e já não cabe lá mais papel impublicável. O Prémio motivou-me, claro, pelo menos o suficiente para encarar a possibilidade de enviar outros textos para concursos similares. Quanto ao resto, já não tenho idade nem paciência para andar a correr atrás de editores, ou “publicadores”, ou lá o que são. Parafraseando o Luiz Pacheco, que foi um grande escritor que nunca publicou um romance, “Puta que os pariu”.
Entrevista e fotos: Vítor de Sousa