Entrevista com Helena Machado

Até 2020, vão ser estudados os impactos da expansão de sistemas tecnológicos de combate ao terrorismo e à criminalidade transfronteiriça na União Europeia

O projeto Exchange – Geneticistas forenses e a partilha transnacional de informação genética na União Europeia: Relações entre ciência e controlo social, cidadania e democracia, liderado pela investigadora Helena Machado e que tem base no CECS, teve início em outubro de 2015 e prolonga-se até ao fim de setembro de 2020, dispondo de um orçamento de cerca de um milhão e 800 mil euros. Decorre de uma Consolidator Grant atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação, um tipo de financiamento individual, para cientistas que desenvolvem investigação de excelência no espaço europeu, para que possam constituir as suas próprias equipas e desenvolver a sua área de especialização. O projeto está a recolher dados empíricos nos 28 Estados Membros, por via da realização de entrevistas e análise de documentação de diversa índole e, segundo Helena Machado, tem em vista um estudo comparativo aprofundado de cinco estudos de caso em Portugal, Polónia, Alemanha, Países Baixos e Reino Unido. Pretende-se compreender de que forma as tecnologias genéticas são incorporadas nos processos de investigação criminal, e quais as dificuldades e controvérsias geradas no sistema de justiça criminal.

Pergunta (P) – O que se pretende com este projeto e quais os seus contornos?
Helena Machado (HM) – O projeto EXCHANGE estuda os impactos sociais, políticos, éticos e culturais da expansão de sistemas tecnológicos que têm como objetivo combater o terrorismo e a criminalidade transfronteiriça na União Europeia. Focamos concretamente a implementação das chamadas Decisões Prüm, 2008, que estabelecem a obrigatoriedade de todos os Estados-Membros criarem condições para a partilha recíproca automatizada de dados de DNA com finalidades de cooperação policial e judiciária. Trata-se de abordar as complexidades e desafios suscitados pela chamada sociedade da vigilância no século XXI, no contexto de uma Europa cada vez mais fragmentada, visando refletir sobre as implicações na cidadania, democracia e controlo social.

O projeto está a recolher dados empíricos nos 28 Estados Membros, por via da realização de entrevistas e análise de documentação de diversa índole. Simultaneamente, visa-se um estudo comparativo aprofundado de cinco estudos de caso em Portugal, Polónia, Alemanha, Países Baixos e Reino Unido.

Um dos objetivos é compreender de que forma as tecnologias genéticas são incorporadas nos processos de investigação criminal, e quais as dificuldades e controvérsias geradas no sistema de justiça criminal.

Uma das dimensões mais relevantes deste estudo diz respeito aos desafios que se colocam pela partilha transnacional de informação em relação a proteção de dados e privacidade, na medida em que a regulação legislativa e as práticas do sistema de justiça variam consideravelmente entre países.

Outro aspeto central orienta-se para o debate em torno do equilíbrio entre segurança pública e respeito pelos direitos humanos. Por um lado, a segurança da sociedade vem justificar a crescente expansão de sistemas de vigilância destinados a controlar e prever a criminalidade. Por outro lado, a acumulação de informação em grandes bases de dados e a partilha transnacional dessa mesma informação suscita riscos para a cidadania que devem ser debatidos na esfera pública. Por fim, queremos compreender o papel e impacto dos meios de comunicação social na difusão de mensagens culturais em torno de vigilância, investigação criminal com recurso a tecnologia sofisticada e reprodução de estereótipos em relação a criminalidade perpetrada por determinados grupos sociais, étnicos ou de certas nacionalidades.

P – Qual o financiamento e qual o respetivo período de vigência?
HM – O projeto EXCHANGE teve início em outubro de 2015 e decorrerá até 30 de setembro de 2020. Tem um orçamento de cerca de 1.80o.000 euros. Trata-se de uma bolsa de consolidação (Consolidator Grant) atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação. Este tipo de financiamento é individual, ou seja, é atribuído a cientistas que desenvolvem investigação de excelência no espaço europeu, para que possam constituir as suas próprias equipas e desenvolver a sua área de especialização.

P – Qual a importância deste projeto no contexto da temática que ele trata?
HM – O projeto EXCHANGE aborda algumas das questões mais prementes para a sociedade europeia: o terrorismo e a criminalidade transfronteiriça. Os recentes ataques terroristas em Paris e Bruxelas vieram reacender nas agendas políticas as preocupações em torno da segurança pública na Europa. A criminalidade transfronteiriça, nomeadamente a criminalidade organizada, é de igual modo objeto de preocupação para as autoridades policiais de vários Estados Membros, devido à complexidade da sua investigação e deteção. Contudo, vários setores da sociedade, nomeadamente, organizações cívicas e grupos de cidadãos manifestam preocupações em relação ao modo como são recolhidos, processados e partilhados dados entre diferentes países. Assiste-se hoje a um agudizar das preocupações da parte dos cidadãos em relação a ameaças à privacidade e proteção de dados. A consciência cívica está alerta em relação aos riscos colocados por uma sociedade da vigilância que pela recolha massiva de dados dos cidadãos pode tornar estender as malhas de suspeição a qualquer cidadão.

O projeto EXCHANGE pretende dar um contributo essencial para uma abordagem destas controvérsias, por duas vias principais. Por um lado, trata-se do primeiro estudo empírico sobre estas temáticas que abrange tantos países: conforme referido, estamos a recolher dados nos 28 Estados Membros. Os estudos existentes sobre a temática das tecnologias genéticas aplicadas à investigação criminal debruçaram-se essencialmente, até hoje, sobre a realidade do Reino Unido e dos EUA. Por outro lado, o EXCHANGE socorre-se de metodologias das ciências sociais que permitem o mapeamento da perspetiva de posicionamentos muito diferenciados na sociedade: a visão dos operadores do sistema de justiça criminal e dos cientistas que desenvolvem tecnologias genéticas, mas também das organizações não governamentais que procuram expor publicamente os riscos e dilemas da chamada sociedade da vigilância.

P – Que aspetos gostaria de destacar?
HM – O projeto EXCHANGE defende uma análise crítica mas construtiva das controvérsias em torno do equilíbrio entre o garante da segurança pública e combate à criminalidade e o respeito por direitos fundamentais como a privacidade e a presunção de inocência. O contributo para este debate, essencial numa sociedade democrática, é concretizado por duas vias principais. Por um lado, trata-se do primeiro estudo empírico sobre estas temáticas que abrange tantos países: conforme referido, estamos a recolher dados nos 28 Estados Membros. Os estudos existentes sobre a temática das tecnologias genéticas aplicadas à investigação criminal debruçaram-se essencialmente, até hoje, sobre a realidade do Reino Unido e dos EUA. Por outro lado, o EXCHANGE socorre-se de metodologias das ciências sociais que permitem o mapeamento da perspetiva de posicionamentos muito diferenciados na sociedade: a visão dos operadores do sistema de justiça criminal e dos cientistas que desenvolvem tecnologias genéticas, mas também das organizações não governamentais que procuram expor publicamente os riscos e dilemas da chamada sociedade da vigilância.

Gostaria ainda de destacar que o EXCHANGE estuda o modo como os média, mais concretamente a imprensa, veiculam informação sobre a investigação criminal transnacional e com isso contribuem para a reprodução e consolidação da estigmatização e criminalização em relação a determinadas minorias étnicas e populações migrantes. No contexto da chamada “crise dos refugiados” e da intensificação de fluxos migratórios para a Europa este fenómeno social assume particular acutilância. De facto, a nossa análise de discursos veiculados na imprensa em países europeus que mais recebem fluxos migratórios vem revelar a perpetuação de mecanismos de suspeição em relação aos “estrangeiros”.

Em síntese, o projeto EXCHANGE estuda questões particularmente relevantes para a sociedade europeia, confrontada com desafios societais acutilantes que balanceiam entre assegurar sociedades inclusivas e a necessidade de consolidar a segurança pública. Recentemente, foi anunciado pela comissão europeia que um dos desafios da investigação será encontrar mecanismos inovadores para uma nova área urgente para a Europa: a segurança e migração. O projeto EXCHANGE de certo modo antecipou estas necessidades, visando contribuir para o desenho de políticas públicas de segurança que sejam eticamente responsáveis, assentes em princípios de transparência e confiança pública.

P – Em termos de empregabilidade (bolsas e afins), o que prevê este projeto?
HM – O projeto EXCHANGE acolhe duas pós-doutorandas e três mestres que estão a desenvolver a sua tese de doutoramento no âmbito deste estudo. Iremos contratar em breve mais um investigador doutorado, um gestor de ciência e tecnologia e dois licenciados que terão oportunidade de fazer as respetivas dissertações de mestrado no âmbito do EXCHANGE.

P – Qual o balanço do percurso caminhado até aqui à volta do EXCHANGE?
HM – Toda a equipa está muito empenhada em aproveitar plenamente os recursos de excelência que nos foram colocados à disposição pelo Conselho Europeu de Investigação. Trata-se de uma oportunidade rara no domínio das ciências sociais e humanas, tanto mais num país como Portugal que só recentemente começou a ganhar competitividade em termos de capacidade de captar financiamento internacional desta natureza. O balanço dos mais de dois anos de execução do projeto é francamente positivo, por vários motivos. Em primeiro lugar, trata-se de um projeto interdisciplinar que procura promover o diálogo entre cientistas sociais e especialistas da genética e do direito. Temos realizado debates interdisciplinares muito frutíferos que colocam em interação perspetivas muito diferentes e que nos permitem conquistar espaço de reflexão e cooperação junto de colegas das ciências da vida, nomeadamente, pela participação em comités de ética de projetos na área da genética. Em segundo lugar, este projeto vem permitir consolidar na Universidade do Minho uma área de conhecimento que até agora estava concentrada no Reino Unido e EUA. Este estudo tem interesse para diversas áreas científicas – sociologia, antropologia, ciências da comunicação, criminologia, ciência política e relações internacionais – podendo vir a constituir-se como uma plataforma de cooperação entre diferentes Escolas da Universidade do Minho. As nossas redes de cooperação profissional têm sido mais internacionais mas nesta fase estamos a apostar também em consolidar colaborações nacionais. O nosso trabalho tem sido disseminado em vários países, por via de publicações em revistas e livros internacionais, realização de palestras e apresentação de comunicações e painéis em congressos. Devo destacar para 2018, a organização em junho de uma Escola de Verão sobre “Vigilância, Criminalidade e Direitos Humanos” que reunirá oradores participantes de diferentes países e com distintos backgrounds profissionais e disciplinares. Destaco ainda a organização de um congresso internacional, em outubro de 2018, sobre “Genética Forense e Sociedade”, que reunirá alguns dos mais renomados especialistas europeus nessa área, tratando-se de um evento com interesse para estudantes e profissionais das áreas da criminologia, sociologia, genética forense e direito e estudos policiais.

Entrevista conduzida por Vítor de Sousa e concedida por escrito.