“O mundo é um lugar de exílio”

Entrevista a Joaquim Costa, docente de sociologia e investigador do CECS, a propósito de “Delirium Literarium”, o seu primeiro romance.

Joaquim Costa, investigador do CECS, onde integra o Grupo de Estudos Culturais e é docente no Departamento de Sociologia do ICS da UMinho, é o autor do romance “Delirium Literarium” (Chiado Editora). Esta estreia na Literatura, é feita através do personagem Ramiro Ataíde – o herói do romance – e, de certo modo, uma espécie de alter ego do autor, como o próprio confessa, na entrevista que nos concedeu (por escrito e não seguindo o Acordo Ortográfico em vigor). Desde logo, por ambos terem nascido na Madeira e serem docentes de sociologia. Ramiro já não, que foi corrido do ensino por incompetência profissional e falta de sanidade mental. O ar na academia tornara-se irrespirável (para utilizar uma imagem de uma canção da banda “Mão Morta”) – o que também acontecia na investigação – e esse despedimento pode considerar-se como uma verdadeira dádiva pelo próprio, dado o júbilo com que passa a viver os seus dias. Saindo do ativo, passa a fazer o que sempre sonhou: viver 24 horas rodeado de livros, lendo os clássicos, nomeadamente o D. Quixote, prosa que pontua todo o enredo do romance, durante os quatro dias narrados.

Lendo para além de Quixote, o livro pode considerar-se mesmo uma homenagem aos leitores de Literatura. Ramiro discorre através de, por exemplo, Maria Gabriela Llansol, Raul Brandão, Céline, Bernardo Soares, Vargas Llosa, Nabokov, Daniel Faria, Cesário Verde e muitos outros (que destaca numa bibliografia que integra a obra), sobre a vida, sobre a morte, enfim, sobre o mundo, que rotula como “um lugar de exílio”, utilizando palavras emprestadas a outro autor.

Esta é uma tragédia que se aproxima de uma comédia. O leitor, ao vestir a pele de Ramiro, depara-se com situações caricatas eivadas de uma crítica mordaz do autor/narrador/protagonista face à maior parte das facetas da vida que não passam, quase sempre, de vazias aparências, mas que a maioria valoriza e utiliza como trampolim para chegar a um qualquer topo. Mesmo que não saia do sítio.

 

P. O que o levou a escrever uma ficção sobre o palco que percorre na vida (é professor universitário da área da sociologia e investigador), mas longe da lógica académica? Necessidade, apenas? Satisfação pessoal? …

R. Pode-se interpretar essa questão de duas maneiras, digamos, opostas. A primeira é a da “morte do autor”: esqueçam o autor, as suas motivações, a sua psicologia. Confesso que é a minha preferida para uma primeira abordagem, por levar directamente a uma apreciação literária do texto, do seu valor. Não estou em boa posição para a fazer.

A outra é a que sentencia: toda a escrita é autobiográfica e só adquire pleno sentido nesse contexto. Aqui, claro, apenas posso dizer que Ramiro é o meu alter ego. A sua vida universitária é um acaso das minhas circunstâncias. Se eu fosse contabilista numa empresa, o palco de Ramiro seria o mundo da contabilidade empresarial. Como sou universitário, o palco é a universidade, mas trata-se de um palco que, no romance, é passado. Ramiro fugiu daquele mundo, o qual, de vez em quando, volta para o assombrar. Coitado: ficou traumatizado.

Definido o palco, falta o resto. Foi um impulso que me deu naquele 29 de Julho de 2009. Já antes eu ruminava na tentação de escrever uma homenagem aos grandes leitores, àqueles grandes leitores que não escrevem. O grande leitor não é aquele que lê muito. Há grandes leitores que lêem muito e grandes leitores que lêem relativamente pouco, mas todos padecem daquele mal de que fala George Steiner: a culpa de não lerem todos os bons livros que há no mundo. Passam pelas suas estantes, bem como pelas dos outros, e sobre eles cai o dedo acusador dos livros que não foram lidos. É um remorso sem fim.

Nesse fim de Julho, estava a ler o Quixote e pensei num grande leitor quixotesco, em delírio literário irremediável. Tudo o que Ramiro encontra na sua vida lhe dá a sensação de “déjà vu”, e com razão, pois tudo já vira na literatura. Enlouquece, para não acabar tonto de todo. A literatura salvou-o.

Na escrita, consumi três férias de Verão. A universidade assim o exigiu. Valeu a pena, mas fiquei cansado, até fisicamente.

– P. O mundo é mesmo um lugar de exílio, como se pode ler no romance? [Daniel Filipe tem um poema intitulado “Pátria, lugar de exílio”, que foi musicado antes do 25 de Abril por Luís Cília, em contestação ao regime então em vigor em Portugal].
R. Exílio, desterro, degredo: podemos usar várias palavras para aquela sensação de habitarmos um lugar de alguma estranheza, de a vida não ser um lar confortável; quem sabe se, um dia, não regressaremos à paz de um lugar já entrevisto na nossa alma?

O protagonista do romance não pode viver em paz num mundo que só é um lar para os agressivos. A universidade faz parte desse mundo e cultiva-o virtuosamente. Basta olharmos em volta: gente extenuada, obcecada em medir tudo e em medir-se com tudo, que aguenta aquele sucesso tremendo ou com adrenalina ou com drogas artificiais (para tudo: para a depressão, para a ansiedade, para a inveja, para dormir, para ficar acordada, …). Aqui e ali, vislumbram-se outras soluções: uma resignação cabisbaixa, uma evasão silenciosa, uma cumplicidade irritadiça… Isto lembra-me a “pequena miséria” que enche A Miséria do Mundo (Pierre Bourdieu), cheia de gente com dificuldade em viver, macambúzia, ressentida. Eis-nos, na universidade e lá fora.

– P. O romance retrata o drama pessoal de Ramiro Ataíde, com quem o leitor se vai afeiçoando, e que, aos poucos, lhe permite olhar para a narrativa como se de uma comédia se tratasse…
R. A distância concede a Ramiro Ataíde a dádiva da bondade. Ele, estando ressentido, não é rancoroso. Acaba por ver o ridículo daquela seriedade toda e perdoa-lhe, eu diria, até com alguma comiseração mais ou menos divertida. Eu, que não sou tão santo, não resisti, aqui e ali, a rabiscar uns traços de sátira. A literatura tem a tradição de “comediar” as maiores vilezas da História (bem como as pequenas infâmias). Veja-se como escreveram algumas vítimas do estalinismo. Aliás, há no romance um episódio inspirado em Bulgakov: aquele em que “chovem” currículos na universidade. No belíssimo livro que é Margarita e o Mestre, o Diabo faz chover dinheiro numa Moscovo aflita com a inflação. Adaptei o episódio à inflação de currículos na universidade. Aquele Diabo não era mau Diabo e, para mais, tinha sentido de humor.

– P. Quem é, então, Ramiro Ataíde, o protagonista do romance?
R. “Madame Bovary, c’est moi”, terá dito (?) Flaubert no decurso do julgamento que o seviciou por ofensa à moral, à religião e, certamente, a mais algumas substâncias sem substância alguma. Por escrito, talvez se deva escrever “Madame Bovary, c’est moi”.

“Ramiro Ataíde sou eu”, direi, mesmo sem julgamento (coisa que – confesso – me agradaria apenas para ver que substâncias eu teria ofendido). Também posso dizer “Delirium Litterarium sou eu”.

– P. Há outros escritos na forja, para publicação?
R. Nenhum. Não quero estabelecer “objectivos” nesta área. “Objectivos” já bastam os da profissão, os da universidade de excelência.

Texto e fotos: Vítor de Sousa