“O serviço público de televisão destina-se a promover a diversidade”

Nuno Artur Silva, administrador na RTP-Rádio e Televisão de Portugal para a área dos conteúdos e programação, defende que o Serviço Público “destina-se a promover a diversidade”. Disse-o na aula de abertura de dois dos doutoramentos a que o CECS está associado – Ciências da Comunicação e Estudos Culturais -, no dia 13 de outubro, na sala de atos do ICS da Universidade do Minho, e que foi subordinada ao tema “Os média, o serviço público e a cultura: o papel da RTP”. Disse ainda que a reflexão desenvolvida em 2015, quando foi convidado para assumir funções na RTP, depois de mais de 20 anos à frente de uma empresa privada de produção de conteúdos audiovisuais, versou sobre o que distingue as estações televisivas existentes em Portugal. E a conclusão foi simples: “As televisões privadas são para todos. O Serviço Público é para as outras pessoas”.

Nuno Artur Silva diz ter recebido o convite para integrar a administração da RTP numa altura em que a empresa estava em processo de privatização, processo que entretanto parou depois de o ministro Miguel Relvas, que tutelava o sector dos média, ter sido substituído pelo ministro Poiares Maduro. Aceite o desafio, a nova administração tinha como objetivo desenvolver uma ação conducente a seguir o modelo previamente definido, em que Conselho Geral independente, elegeu o Conselho de Administração, no sentido de desenvolver um Serviço Público de Média (SPM).

Para ilustrar este quadro, o administrador da RTP lembrou que “já havia quem apostasse na sua programação em Tony Carreira” e, por isso, “o Serviço Público de Média tinha que garantir outro tipo de coisas”. E, para além desses géneros e das telenovelas, que pontuam as outras televisões, “havia muito mais caminhos a seguir, como a produção de filmes, de telefilmes e de documentários”. No que respeita à informação, sustentou que “os telejornais devem ter a tendência de abrirem com assuntos diferentes dos das televisões privadas”, frisando não haver jornalismo de serviço público e jornalismo privado. Sublinhou, no entanto, que existem “alinhamentos informativos de serviço público e alinhamentos privados”.

Só que todas estas mudanças têm anticorpos, como fez notar, uma vez que havia quem pensasse de maneira diferente e defendesse que se devia continuar a apostar na produção de telenovelas, produzindo-as com uma qualidade superior à dos outros canais televisivos. Ora, Nuno Artur Silva mostrou-se, desde logo, contrário a essa eventualidade: “Com todo o respeito pelo Tony Carreira, ele não é o melhor músico…”. Mais: se o mercado oferece esse tupo de produtos, o Serviço Público deve complementá-los: “O mundo é diverso. Nós assumimos o papel de curadores para os espectadores, mesmo que se lhe afigure de difícil concretização”. De facto, quando assumiu funções, a equipa que integra pensou em abordar uma série de produtores e realizadores, no sentido de promover a propalada diversidade. Só que, o problema residiu no facto de não haver profissionais disponíveis para produzir, por exemplo, o número de documentários pretendido. É que, até aí, “essa necessidade não se fazia sentir, porque ninguém encomendava esse tipo de produtos, nem no serviço público, nem no espectro audiovisual português”.

Um exemplo da mudança de lógicas, com êxito reconhecido, foi o Festival Eurovisão da Canção, ganho este ano por Portugal, e que é o espetáculo musical mais visto a nível mundial. Recorda que, desde que Portugal começou a participar no evento, muitas canções portuguesas por lá passaram, questionando o porquê de nunca terem tido grande êxito. E explica o que foi feito para alterar a situação: “Mudamos a lógica, fazendo uma pausa de um ano, o que foi muito criticado. Mas valeu a pena pois, logo no ano seguinte [2017], vencemos. Chamamos os melhores compositores do mercado, com obra feita na área da pop, e demos liberdade para que as suas produções fossem cantadas por quem quisessem. É neste contexto que surge o Salvador Sobral, um cantor de jazz”. Mas a mudança não terminou aí: “Não nos ficamos pelo festival em si. Envolvemos as pessoas nas redes. Contamos as histórias dos participantes, o tal storytelling”. Para Nuno Artur Silva, essa é a atividade primordial: “A memória, a ligação ao que fomos, e ao que somos, hoje. Contar histórias é o meio mais envolvente de interagir com as pessoas”. Em relação ao Festival Eurovisão da Canção, a escolha do representante português foi feita em partes iguais pelo público e por um júri especializado, pelo que “houve um equilíbrio entre especialistas e o voto popular, sendo isso, também, serviço público”.

A importância do storytelling

O storytelling pontua, de resto, a vida de Nuno Artur Silva que desde jovem gostava de cinema, de sketchs de humor, de literatura, de BD, “tendo prazer em escrever para outros”. No início dos anos 90 do século XX deu-se a abertura do mercado às televisões privadas e foi nessa altura que, com outros colegas de faculdade, criou uma agência de argumentistas quando não existia a carreira de argumentista, sendo a de realizador a que dominava.

A ditadura durou até abril de 1974 e os seus responsáveis não eram grandes fãs do documentário, a não ser quando estavam ao serviço da ideologia do regime. No canal do Estado não havia produção regular de documentários: “De 1957, até 1974 – pode ver-se através do Canal Memória -, não há séries nem documentários. Em Portugal, só a partir dos anos 40, temos os filmes do Vasco Santana e do António Silva”. Mais tarde, após a revolução, adota-se o modelo francês de subsidiação de filmes, “sem grandes preocupações para chegar ao público, ao contrário da ficção da telenovela, que tinha grandes audiências”. De resto, o fenómeno mais marcante no que ao setor diz respeito foi a produção de telenovelas ter entrado na televisão. Aconteceu em 1977 com a “Gabriela” e foi pela mão de Carlos Cruz, então diretor de programas da RTP. A partir daí, passou a haver uma telenovela por dia na televisão.

Em 1992, aparece a SIC (está a comemorar 25 anos de vida) e, a primeira novidade foi ter firmado um acordo com a brasileira TV Globo, para que a estação ficasse com o exclusivo para Portugal das suas telenovelas, medida que se revelou num grande sucesso. Depois veio a TVI, que seguiu o mesmo caminho em termos de programação. Nuno Artur Silva refere que, na altura em que foi convidado para a RTP, “a SIC, a TVI e a própria RTP, todas elas, exibiam telenovelas depois do grande noticiário da noite. Tratava-se de uma programação horizontal, num lógica latino-americana”. E o panorama era este: de um lado havia o cinema de autor, “com um aparente ódio ao telespectador”, do outro, a telenovela. O sector do audiovisual encontrava-se em subdesenvolvimento, sendo que a mitologia contemporânea se mede pela diversidade audiovisual: “Ora, quando chegamos à RTP perguntamos para onde queríamos ir, tendo presente que, no caso da TVI, havia 6,5 milhões de pessoas a verem telenovelas”. Nesse sentido, uma das primeiras prioridades foi fazer uma call dirigida a produtores independentes, para averiguar da existência de ideias para séries e documentários. Isso é replicado, agora, todos os anos, muito embora o grande problema seja a falta de dinheiro para concretizar essa política: “A RTP é a terceira estação pública menos financiada da Europa, ainda por cima tendo canais como a RTP África. Tudo isso é feito com pouco dinheiro. Sendo que nós não estamos em competição com os canais privados. Não pretendemos competir com a SIC nem com a TVI. Assim, com um orçamento anual de 200 milhões de euros, temos que compensar tendo alguns produtos comerciais, tipo ‘The voice…’. De resto, a televisão pública não é só para intelectuais….”. Para contrabalançar, as transmissões do futebol são o único conteúdo diferenciado, “não havendo nada, mas nada, que lhe chegue, nem de perto”. Ora, o futebol capta uma audiência que mais nenhum produto consegue e que permite que se produzam séries com menos audiências (que se ficam por um quinto das audiências das telenovelas).

No que se refere ao seu percurso, lembra que esteve mais de 20 anos a vender conteúdos da empresa privada que fundou com os seus colegas, as “Produções Fictícias” (PF). E, contando a história da empresa, referiu que começou com trabalhos para os programas de Herman José, que era, à data, a grande estrela nacional de televisão e de rádio. Só por causa dele, a equipa das PF foi aumentado: “Era apenas eu e o Rui Cardoso Martins… O trabalho regular permitia sobreviver. À época, não havia argumentistas de humor. Mas isso acontecia, porque não eram chamados. Chamou-nos o Herman… E criamos a empresa nessa lógica, tendo consciência de que só o ritmo industrial permitiria a criação de géneros e de subgéneros”.

As PD tiveram que se adaptar à lei do mercado, sendo que o projeto evoluiu, produzindo os seus próprios diferentes projetos (“O Homem que Mordeu o Cão”, com Nuno Markl, os “Gato Fedorento”, com Ricardo Araújo Pereira, o “Contra Informação”, “O Eixo do Mal”…): “Passamos a ser, ao mesmo tempo, autores, produtores e agentes”. É nesse quadro que, mais tarde, aparece o “Canal Q”, de onde Nuno Artur Silva saiu para a RTP.

Texto e fotos: Vítor de Sousa