Visualizar publicação

O Telejornal e o Serviço Público

Felisbela Lopes

1999 | Coimbra: Minerva

ISBN:9789728318703

Feslibela Lopes

1999
Coimbra: Minerva 

Nota introdutória
por Manuel Pinto

Falar de televisão é falar de paixões e de ódios, de ideias e de pre-conceitos. De uma realidade exterior, mas também interior. Mas é importante falar dela. Não só dos programas ou da programação, mas também da relação com esse objecto que, de há umas décadas para cá, está presente – como uma lareira – na quase totalidade dos lares, pelo menos das sociedades desenvolvidas.

E se é importante trocar ideias, opiniões e sentimentos sobre um dimensão tão significativa do quotidiano individual e da vida social, não é o menos que o façamos de modo fundamentado, apoiado na análise serena e rigorosa. Ver televisão, falar de televisão deveria ser também “ler” televisão.

O estudo que Felisbela Lopes agora publica constitui um contributo nesse sentido. Ele inscreve-se num esforço que vem sendo feito entre nós – como especial ênfase desde os anos 80 – de estudarmos a nossa realidade mediática, para que possamos compreendê-la melhor, não isoladamente, mas de forma contextualizada e inserida na vida social. Esse é, sem dúvida, um caminho avisado para podermos ter posições mais esclarecidas quanto ao que somos e temos e àquilo que achamos dever ser feito.

O Telejornal é um instituição. E é uma instituição, antes de mais, porque institui aquilo que, em cada dia, o canal que o emite e os profissionais que o fazem consideram dever ser notificado, enunciado e divulgado. É-o, ainda, por instituir, nas nossas casas e nas nossas vidas, hábitos, rotinas, rituais, visões e representações do mundo. É-o, também. Pela sua presença regular, a hora certa ao longo dos dias e dos anos. É-o, enfim, por se ter tornado uma realidade natural e familiar, trazendo-nos o vulgar e o heróico, o próximo e o distante, a vida e a morte, a claridade e o mistério.

Em Portugal, país da Europa que regista um dos mais baixos índices de leitura de jornais de informação geral, o telejornal, constitui, ao lado da informação radiofónica, uma das vias privilegiadas de seguimento da actualidade para um elevadíssimo número de cidadãos. Assim sendo, a representação por estes construída relativamente ao país e ao mundo é, em boa medida, aquela que esse serviço informativo proporciona, seja através de um canal privado seja de um canal público. Quanto mais reduzido for esse leque das fontes de informativas disponíveis e utilizadas ao nível das audiências, maior o risco de empobrecimento na percepção e compreensão do que se passa e mais responsabilidades empendem sobre a oferta televisiva.

O serviço noticioso da televisão difundido em prime time é talvez dos géneros e “produtos” televisivos em que, de um modo mais notório, se expressa a dimensão da construção social da realidade, inerente a todo o trabalho mediático. Desde logo, pelo horário e duração, pelo genérico, pelo cenário escolhido, pela figura e posição do pivot, pelo tipo de eventos seleccionados ou excluídos e pelas lógicas predominantes na confecção dos alinhamentos. Isto sem esquecer os meios técnicos e humanos disponíveis e os formatos ou géneros jornalísticos utilizados em cada peça. Por exemplo, a tradição portuguesa de recorrer a um apresentador ou apresentadora adulto, mas jovem, está longe de ser uma opção universal, como facilmente verificará quem frequentar canais de outros países. Por outro lado, analisado de um ponto de vista diacrónico, o telejornal de hoje pouco tem a ver com o telejornal dos anos 80.

Ora, o estudo que é aqui apresentado, sobre o Telejornal nas vésperas da abertura dos canais privados de TV em Portugal, começa por ter, desde logo, a vantagem de nos avivar a consciência de que este programa não foi sempre como o temos conhecido nos anos mais recentes. A política, e nomeadamente os assuntos do Estado e, mais precisamente, do Governo, presidiam à ordem de prioridades; os fait-divers poderiam aceder ao alinhamento, mas remetidos para o fecho da lista de assuntos, a modos de nota curiosa ou humorística. Em regime de monopólio, o operador público não seria uma mera ‘correia de transmissão’, mas movia-se, certamente, muito próximo da tutela do poder do momento, das respectivas lógicas, interesse e clientelas. O Telejornal, momento privilegiado de contacto com o país, dificilmente poderia deixar de ser também montra de exibição dos actos e projectos oficiais.

A análise comparativa entre o ano de 1988 e o de 1992 permite evidenciar esta presença da dimensão político-institucional e um outro aspecto que lhe está intimamente ligado: a centralização na capital do país, que marca o contexto de ocorrência da esmagadora maioria das notícias, fazendo jus ao ditado que ‘Portugal é Lisboa e o resto é paisagem’. De resto, entre os dois marcos temporais considerados, pode observar-se, pelos dados aduzidos pela autora, uma tendência para um decréscimo do peso relativo dos géneros jornalísticos mais propiciadores da contextualização e enquadramento e explicação das notícias, como são as entrevistas e os comentários em estúdio, feitos por jornalistas, por especialistas ou por analistas eventuais ou ‘residentes’. Este dado é coerente com a tendência, que parece ir-se acentuando ao longo dos anos 90, no sentido de uma ‘tabloidização’ da informação televisiva.

Este livro resulta de um trabalho de investigação realizado por Felisbela Lopes, no âmbito do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. Tive o privilégio de acompanhar este trabalho desde o seu início, até à sua discussão pública pelo Prof. Doutor Paquete de Oliveira. A autora teve de manusear largos milhares de informações relacionadas com os alinhamentos dos telejornais dos anos que estudou, tendo de definir e apurar uma grelha de análise que lhe possibilitasse tratar e analisar essa informação que, persistente e incansavelmente, conseguiu obter. Fê-lo a partir de um conjunto bem definido de perguntas que resultaram da operacionalização de um conceito de serviço público de televisão, que procura explicitar e discutir na primeira parte deste estudo. O resultado constitui um contributo relevante e, ao que julgamos saber, original para o desenvolvimento do estudo do Telejornal e, mais globalmente, da informação televisiva.

É certamente matéria de debate e de polémica o que deva entender-se por serviço público de televisão, nomeadamente no campo informativo. Num certo sentido, todo o trabalho desenvolvido por empresas e por profissionais no sentido de proporcionar o conhecimento público dos principais acontecimentos da actualidade é, de per si, um serviço público, concretizável de múltiplos modos e com diversas e porventura divergentes orientações. A pluralidade de perspectivas e de abordagens é, do mesmo modo, uma riqueza que funda e alimenta a comunidade política e um serviço prestado ao público. Mas isso não retira nem lugar nem sentido a que, numa sociedade concreta, o poder legislativo atribua a um operador em particular específicas responsabilidades e atribuições, designadamente em relação a áreas e matérias atinentes a direitos fundamentais , que uma lógica de mercado preocupada com a maximização da audiência não possa, não queira ou não garanta contemplar.

Um estudo como o que Felisbela Lopes aqui nos apresenta precisa de ser continuado e alargado. Por outro lado, a análise dos alinhamentos não substituí a análise dos próprios telejornais e essa pesquisa fazia todo o sentido. Em segundo lugar, porque – como a autora aqui refere, na parte final do livro – interessaria prolongar esta linha de investigação pelos anos 90 adiante, comparando o trabalho realizado pelos diferentes operadores. É de esperar que a experiência adquirida e os estímulos e sugestões que advirão da leitura crítica deste livro incentivarão a autora a prosseguir nesta tarefa tão necessária de nos ajudar a conhecer e compreender melhor a informação televisiva a que temos e, através dela, o país que somos e o mundo em que vivemos.